LETRAMENTO INTERDISCIPLINAR: UMA INTEGRAÇÃO
ENTRE A PRODUÇÃO TEXTUAL E A MATEMÁTICA
Fábio Garcia Bernardo, M.Sc.
Instituto
Benjamin Constant/SME-DC
Prof_fabiobernardo@yahoo.com.br
Nathália Nicácio Ganzer, M.Sc.
SEEDUC/SMECE
nathalia.ganzer@gmail.com
Osmeire Pinheiro de Matos, M.Sc.
SEEDUC/SME-DC
osmeire@gmail.com
Resumo:
Este trabalho é resultado de quase um ano de discussões e trocas de
experiências entre formadores e orientadoras de estudo do Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) das cidades de Duque de Caxias, São João
de Meriti e Magé. Aliando as ideias propostas nos cadernos, os textos e artigos
que complementaram os encontros da formação continuada, propõe-se, aqui,
atividades e reflexões que possibilitem professores alfabetizadores trabalhar a
produção textual, com variados gêneros literários, integrando o significado dos
números no cotidiano, bem como as operações do campo aditivo. A proposta foi
trabalhada em sala com alunos do terceiro ano do Ensino Fundamental pelas professoras
alfabetizadoras e os resultados, segundo as mesmas, muito satisfatórios. A
metodologia consiste em levar um texto motivador (narração, carta, receita),
ler o texto com os alunos e propor-lhes a construção do
seu próprio texto, dentro de sua realidade e prática social. Os textos contêm
diversos elementos e signos matemáticos que podem ser trabalhados e
interpretados individualmente ou coletivamente pela turma. No segundo momento,
sugerem-se questionamentos e reflexões que possibilitam a interpretação do
texto, assim como os aspectos do letramento matemático envolvidos no mesmo. O
trabalho abre um leque de possibilidades, onde a produção textual pode
interagir com outras disciplinas, bem como levantar ricas discussões e proporcionar
um ambiente problematizador e reflexivo, altamente recomendado para uma
aprendizagem significativa e interdisciplinar.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Letramento; Matemática; Práticas Sociais; Produção
Textual.
1. Da prática social à
interdisciplinaridade
Quando
falamos em escolarização, nos
remetemos imediatamente à ampliação do Ensino Fundamental (Lei 11.274/2006),
que propõe a escolaridade obrigatória para crianças de seis anos (KLEIMAN,
2009). Nesse sentido, o Pacto Nacional
pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), vem assegurar que todas as
crianças estejam alfabetizadas até os 8 anos de idade, no final do 3º ano do
Ensino Fundamental, conforme o acordo
estabelecido entre governo federal, distrito federal, estados e municípios. (BRASIL,
2014).
Mais
do que um acordo político, falar e participar do PNAIC, seja enquanto
formadores de disciplinas ou orientadores de estudo, significa assumir uma
posição discursivo-ideológica perante a sociedade brasileira e os problemas
enfrentados atualmente, principalmente, pela escola pública.
Em
primeiro lugar, as teorizações presentes no material do Pacto são constituídas pela “ebulição” das reflexões pós-modernas
acerca do sujeito.
Assim,
na tentativa de compreender nossos tempos e de abrir espaço para visões
alternativas ou para ouvir outras vozes que possam revigorar nossa vida social
ou vê-la compreendida por outras histórias, desloca-se o olhar do sujeito
social/aluno “homogêneo”, trazendo à tona seus atravessamentos identitários,
construídos no discurso (MOITA LOPES, 2006, p.22-23).
Isso
significa uma mudança de postura por parte de nós, professores, quanto à
proposta de alfabetização. Significa problematizar ou criar inteligibilidade
sobre os contextos de uso da linguagem por parte dos sujeitos sociais/alunos e
as dificuldades enfrentadas por esse sujeito em relação à sua comunidade,
família, etnia, gênero, religião, sexualidade de encontro a uma escola, a um
professor, ou seja, a uma educação por vezes de cunho tradicionalista.
Em
última análise, problematizar e criar inteligibilidade sobre os contextos de
uso da linguagem significa ir além da tradição, significa legitimar as
dificuldades de alfabetização e os sujeitos sociais que outrora possuíam suas
identidades sequestradas pela escola,
por não constituírem o modelo de sujeito social/aluno homogêneo naturalizado
ideologicamente pela sociedade. Significa intervir na ou falar à prática
docente.
Desse
modo, são necessárias teorizações que dialoguem com o mundo contemporâneo, com
as práticas sociais que as pessoas vivenciam em seus cotidianos. Para dar conta
da complexidade dos fatos envolvidos com a linguagem e a alfabetização em sala
de aula, passou-se a argumentar na direção de um arcabouço teórico interdisciplinar (MOITA LOPES, 2006, p.22-23).
É
importante ressaltar, todavia, que pensar interdisciplinarmente
é uma proposta nova ainda para muitos professores e, como toda ideia nova,
requer ainda bastante pesquisa docente. O Pacto,
nesse sentido, vem contribuir para a formação continuada de professores que
visam aperfeiçoar a sua prática docente – que é, por conseguinte, uma prática
social. Uma vez que os sujeitos sociais não vivem em um mundo dividido em
compartimentos e já que todas as áreas de conhecimento dialogam em tempo
integral no nosso cotidiano, a alfabetização
do sujeito social/aluno pós-moderno não deve ser feita também de forma
compartimentada.
Nesse
contexto, utilizaremos a partir deste parágrafo a palavra letramento em detrimento de alfabetização,
uma vez que letrar um sujeito
social/aluno exige a inserção deste em práticas
sociais, em gêneros discursivos
diversos, isto é, em questões sociais mais abrangentes, em que a escrita se
insere e passa a ser aprendida ou apropriada com a participação efetiva do
aluno enquanto membro da comunidade escolar (MARTINS, 2012, p. 28).
Cabe à escola ensinar o aluno a
utilizar a linguagem oral nas diversas situações comunicativas, especialmente
nas mais formais: planejamento e realização de entrevistas, debates,
seminários, diálogos com autoridades, dramatizações, etc. Trata-se de propor
situações didáticas nas quais essas atividades façam sentido de fato, pois
seria descabido “treinar” o uso mais formal da fala. A aprendizagem de
procedimentos eficazes tanto de fala como de escuta, em contextos mais formais,
dificilmente ocorrerá se a escola não tomar para si a tarefa de promovê-la. (BRASIL,
1997, p.26;
SCHNEUWLY, 2004).
Nesse
sentido, visamos propor no presente artigo uma experiência interdisciplinar para a prática docente envolvendo as disciplinas língua portuguesa e matemática (Resolução de problemas). Essa proposta foi elaborada em
uma das reuniões de formação do Pacto, no
polo de Duque de Caxias, com as orientadoras de estudo. Veremos neste artigo
que as práticas sociais serão o ponto
de partida tanto para o letramento do
sujeito quanto para inter-relação entre as disciplinas.
Enquanto
agência de letramento por excelência de nossa sociedade, acreditamos que na
escola devem ser criados espaços para experimentar formas de participação nas
práticas sociais letradas. Sob essa ótica, os múltiplos letramentos da vida
social, bem como a interdisciplinaridade
possuem funções estruturantes no trabalho escolar durante todos os ciclos de
aprendizado (KLEIMAN, 2007).
A
ideia de interdisciplinaridade tende a transformar-se em uma bandeira
aglutinadora na busca de uma visão sintética, de uma reconstrução da unidade
perdida, da interação e da complementaridade nas ações envolvendo diferentes
disciplinas ou pseudo-disciplinas, tais como educação moral e cívica, produção
textual, matemática financeira, educação sexual, entre outras. Nesse sentido,
as formações do Pacto reuniam nos
encontros mensais professores multidisciplinares, habituados com a realidade
social da sala de aula, com experiências amplas e diversas, porém com formação
deficiente e sem ideias de como trabalhar os conteúdos de forma contextualizada
e integrada com o contexto social e as diversas disciplinas da grade escolar.
Como
relato do grupo, nota-se uma necessidade grande de se entender o que de fato é
importante e prioritário no ensino de matemática dos anos iniciais do Ensino
Fundamental. De que forma determinados conteúdos devem ser tratados e
abordados, bem como a dificuldade de integrar o dia a dia, a prática social e
diversos eixos disciplinares presentes no currículo escolar.
Diante
disso, apoiadas nos cadernos do Pacto,
alicerçadas nas formações, discussões e trocas de experiências, surgiu uma
proposta de trabalho que possibilita a integração de língua portuguesa, por
meio da produção textual e do trabalho com a oralidade e o letramento
matemático, avançando e permitindo um caminhar por diversos conteúdos
matemáticos e outros da língua portuguesa, como veremos adiante.
A
perspectiva de um letramento matemático deve estar incorporada a uma visão mais
ampla das práticas sociais de uso da matemática:
Reforçando o papel social da
educação que tem por responsabilidade promover o acesso e o desenvolvimento de
estratégias e possibilidade de leitura do mundo para as quais conceitos e
relações, critérios e procedimentos, resultados e culturas matemáticos possam
contribuir (FONSECA, 2004, p.12).
Mais
do que letramento matemático, sugere-se aqui um numeramento matemático, que
ultrapassa fronteiras e abre um leque de possibilidades para a integração com a
língua portuguesa. Segundo Toledo
(2004), numeramento seria mais amplo que alfabetismo matemático, pois inclui a
capacidade de, “diante de determinadas demandas do mundo real, fazer uso dessas
mesmas habilidades combinadas com as habilidades de letramento, ou seja,
habilidades de comunicação, leitura escrita”. Fonseca (2004) justifica a opção
pelo uso do termo letramento em função da concepção de “habilidades matemáticas
como constituintes das estratégias de leitura que precisam ser implementadas
para uma compreensão da diversidade de textos que a vida social nos apresenta
com a frequência e a diversificação cada vez maiores.”
Compreendem-se habilidades
matemáticas como:
A capacidade de mobilização de
conhecimentos associados à quantificação, à ordenação, à orientação e às suas
relações, operações e representações na realização de tarefas ou na resolução
de situações-problema, tendo sempre como referência tarefas e situações com as
quais a maior parte da população brasileira se depara cotidianamente (FONSECA,
2004, p.13)
Ainda
sobre os processos escolares de letramento matemático, D’Ambrosio (2004)
considera como possibilidades pedagógicas inovadoras o lidar com os números, já
que os mesmos aparecem nos preços e medidas, nos horários e calendários, dentre
outros. Assim como efetuar algumas operações elementares e usar calculadora,
tarefas inerentes ao dia a dia do aluno, que não necessariamente são adquiridas
na escola, fazendo parte do conhecimento de mundo do mesmo. É o que o autor
chama de Literacia, definida como “a
capacidade de processar informação escrita, o que inclui escrita, leitura e
cálculo na vida cotidiana (p. 36).
D´Ámbrósio
indica ainda algumas possibilidades para o trabalho com a matemática no Ensino Fundamental,
dentre elas, a formação do aluno para lidar com a sua rotina diária, que
inclui:
(...) leitura e interpretação
crítica de noticiários de jornais e televisão; interpretação do momento social
através de novelas, filmes, telenovelas, programas de auditório; capacidade de
se localizar com crescente precisão (rua, número, bairro, CEP, telefone,
distâncias da casa à escola, tempo de percurso, avaliação do tempo gasto em
transporte num dia, num mês, num ano, numa vida) e leitura de mapas e sinopses
internacionais; gestão da economia pessoal (custos, moeda, orçamento familiar,
do estado); compreensão de questões demográficas (população, distribuição de
população, índices de qualidade de vida etc.) e ambientais (padrões de
temperatura, de precipitação, áreas florestais, cultivadas, recursos hídricos etc.);
tratamento de dados sobre o corpo (altura, peso etc.); organização e
interpretação de tabelas, iniciando, assim, a percepção do que são estatísticas
e probabilidades (p. 45-46).
Não
buscamos, contudo, esgotar as formas de se fazer a interdisciplinaridade, tampouco
defini-la, mas sim, sugerir que o letramento
eficiente é aquele que entende a linguagem como prática social, isto é, como um
modo de ação historicamente situado, que tanto é constituído socialmente, como
também é constitutivo de identidades sociais, relações sociais e sistemas de
conhecimento e crença. (FAIRCLOUGH, 2001, p.91), (RESENDE & RAMALHO, 2006,
p.26 e 27).
Assim,
partindo das práticas sociais, das experiências dos alunos, de suas realidades,
queremos acreditar, neste artigo, que é possível viabilizar um diálogo entre
língua portuguesa e matemática, superando as diferenças entre as disciplinas,
rumo a uma escola que não olhe mais para um sujeito social compartimentado
pelas diferentes áreas do conhecimento humano, bem como excluído por uma educação
tradicionalista, que ignora as identidades sociais dos alunos pós-modernos.
2.
Proposta de trabalho e metodologia
De acordo com Koch (2014), a produção oral e escrita
resulta de um tipo específico de atividade a que os autores alemães denominam “Sprachliches Handeln” entendendo por Handeln todo tipo de influência
consciente, teleológica e intencional de sujeitos humanos, individuais ou
coletivos, sobre seu ambiente natural e social. Dessa forma, “Sprachliches Handeln”, diz respeito à
realização de uma atividade verbal, numa situação dada, com vistas a certos
resultados.
A partir da necessidade do sujeito social/aluno em
resolver situações cotidianas, as atividades propostas a seguir se articularam
em três aspectos: motivação, finalidade e realização. É importante ressaltar
que tais ações e operações, que constituem a atividade verbal e escrita, estão
inseridas em um processo social – o que permite considerar a linguagem enquanto
atividade determinada pelos fatores sociais.
O primeiro momento surge de uma necessidade, isto é,
de uma motivação. Em seguida, planejam-se as atividades, fazendo uso de meios
sociais – os signos – ao determinar as metas das mesmas, bem como os meios
adequados a sua realização. Por fim, realizam-se as atividades, e com isso alcançam-se
os resultados visados. “Cada ato da atividade compreende a unidade dos três
aspectos: começa com um motivo e um plano, e termina com um resultado, com a
consecução da meta prevista no início” (KOCH, 2014, p. 11 e 12). Enfatiza-se
aqui que nesse meio há um processo dinâmico de ações e operações concretas,
orientadas para essa meta ao qual utilizaremos a integração entre a matemática
e língua portuguesa, por meio de produções escritas ou orais.
Acredita-se que o professor deve ser autor de sua
prática, utilizando como ponto de partida a realidade dos alunos e suas
práticas sociais. Desta forma, as atividades aqui propostas servirão como
contribuição para professores pesquisadores de todas as áreas, os quais direta
ou indiretamente trabalham ou podem vir a trabalhar com projetos de letramento,
estes vistos, conforme já fora explicitado, como práticas sociais
historicamente situadas que dizem muito a respeito de nossas crenças,
ideologias, atividades, relações interpessoais e identidades.
Atividade 1/Sugestões
Atividade proposta no
caderno dois do PNAIC, que trata da quantificação, registros e agrupamentos.
Tais objetivos podem ser resumidos na construção de habilidades para: estimar,
comparar e quantificar elementos de uma coleção, representar graficamente
quantidades, compartilhar, confrontar, validar e aprimorar registros, ler e
escrever signos numéricos, reproduzir sequências numéricas ascendentes e
descendentes, elaborar, comparar, comunicar, confrontar e validar hipóteses,
estabelecendo relações na língua oral e escrita. Como pano de fundo, destacamos
a atividade, da seção “Compartilhando” do caderno 2, página 69, conforme abaixo
Figura 1 - “Compartilhando” caderno 2, página 69. Disponível
em: http://pacto.mec.gov.br/2012-09-19-19-09-11
No relato da figura abaixo,
segue a descrição da atividade realizada:
Figura 2 - “Compartilhando” caderno 2, página 69.
disponível em: http://pacto.mec.gov.br/2012-09-19-19-09-11
Atividade 2/Sugestões
Destinada
ao 3° ano de escolaridade do Ensino Fundamental. Produção coletiva de um texto,
explorando o contexto do futebol/Copa do Mundo, apoiado na imagem abaixo.
Contexto:
A imagem é uma toalha de papel utilizada por uma rede de fast food nas bandejas onde eram servidos seus lanches, nos meses
que antecederam a Copa do Mundo.
|
Figura 3 - Material público, distribuído
gratuitamente nas lojas da rede de fast
food.
Escolher
10 números presentes na folha e construir, coletivamente, um texto dando-lhes
sentido e significado, explorando suas diferentes funções e representações.
Exemplo:
Até 2014, foram disputadas ____ Copas do Mundo, porém apenas ___ países
conquistaram o título. Já foram marcados ___ gols, porém o maior número de gols
marcados em uma Copa foi ___ gols, na Copa dos Estados Unidos. Também já foram
aplicados um total de ___ cartões amarelos e ___ jogadores foram expulsos em
todas as edições até aqui. ___ bilhões de pessoas assistiram aos jogos e o gol
mais rápido saiu aos ___ segundos de partida. Para se jogar futebol, não há um
limite de idade. Curiosamente, o jogador mais velho a disputar uma Copa do Mundo
tinha ___ anos de idade. Os números são impressionantes, mas a maior Copa do Mundo
da história registrou um público nos estádios de ___ pessoas.
Problematizando:
Explorar os significados dos
números (tempo, quantidade de pessoas, gols marcados, cartões, número de
países, etc.). Estabelecer uma relação com o cotidiano escolar e as práticas
esportivas da escola. Interpretar, discutir e debater algumas ideologias
presentes no texto (futebol é só para meninos, os alunos conhecem alguma
jogadora de futebol? etc.). Explorar os países participantes, idiomas que
falam, conhecem palavras em outros idiomas? Regras do jogo, trabalho em equipe,
preconceito e discriminação, respeito às diferenças. Meios de transporte
utilizados pelos turistas. Discutir o sentido e o significado dos números,
levantando a discussão de que o número 45, por exemplo, pode ser a quantidade
de jogadores das duas equipes com a comissão técnica, pode ser o tempo de duração
da partida, bem como o número da camisa de um jogador, ou ainda a quantidade de
faltas do jogo. Quanto à produção
escrita, pode-se pedir que os alunos escrevam os nomes dos jogadores e alguns
números por extenso.
Nota-se
aqui uma infinidade de questionamentos e situações que podem ser criadas,
discutidas e debatidas pelo professor e seus alunos. Ressalta-se ainda a
extensão da proposta para outros alunos, de anos de escolaridade diferentes e
outros contextos, assim como a produção textual que pode ser desenvolvida em
duplas, trios ou de forma individual, de acordo com a realidade de cada turma.
É importante refletirmos sobre a atividade no sentido que a mesma pode ser
realizada, mesmo que a turma não esteja alfabetizada, pois o significado e o
sentido dos números são heranças da vivência cotidiana dos alunos.
Atividade
3/Sugestões
Destinada ao 3° ano de escolaridade,
trabalha leitura, produção escrita e oral com o gênero “carta”. Compreensão e
interpretação textual; ampliação do vocabulário, percepção dos significados e
dos diferentes sentidos das palavras e expressões. Quanto à oralidade: narração
dos fatos da carta, estabelecendo relações de causalidade e temporalidade; adequação
da linguagem à situação comunicativa, no caso, a carta. O número em diversos
contextos. Mesmo signo, diferentes interpretações. Ordenação, campo conceitual
aditivo.
Contexto:
Carta de um vizinho para outro do mesmo prédio, deixada na caixa de
correspondência.
Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 2013.
Caro vizinho do 103,
Quem fala aqui é
o homem do 201. Recebi outro
dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor
reclamava contra o barulho em meu apartamento. Devo dizer que estou desolado
com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e,
se não o fosse, o senhor teria ainda ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem
trabalha 10 horas por dia, 6 dias por semana como eu, entende que o senhor tem
direito ao repouso noturno e reconheço que é impossível repousar no 103 quando há vozes, passos e músicas aqui
no 201. Ou melhor: é impossível ao 103 dormir
quando o 201 se agita; pois como
não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois
números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 201, me limito a Leste pelo 203, a Oeste pelo 202, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao
Norte pelo 204, ao alto pelo 303 e embaixo pelo 103 – que é o senhor.
Prometo sinceramente adotar, depois
das 22 horas, de hoje em diante,
um comportamento manso. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão, ao meu número)
será convidado a se retirar às 21:45,
e explicarei: o 103 precisa
repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o prédio de número 783, onde mora, para tomar o ônibus 109 que o levará até o número 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305.
Aproveito a oportunidade para
sugerir-lhe uma campanha para a redução dos lixos de nosso prédio. Notei que o senhor deixa 2 sacolas por dia na
porta de sua casa. Nosso outro vizinho sempre deixa 3 sacolas às segundas,
quartas e sextas. Se somarmos as minhas 5 sacolas semanais, chegaremos a um
número exagerado para apenas 3 apartamentos. Nossa vida, vizinho, está toda
numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não
incomoda outro. Vamos conversar?
Cordialmente,
Vizinho do 201.
Texto adaptado de BRAGA, Rubem. Para
gostar de ler. São Paulo: Ática, 1991.
Problematizando:
Pode-se
observar e discutir como se escreve uma carta e os seus elementos
constituintes, forma de tratamento, cordialidade, respeito. Ortografia,
escrita, descrição de fatos. Dias da semana, unidades de tempo, soma e
subtração de números (sacolas de lixo) metas semanais, total de lixo produzido
em uma semana, um mês. Observar a multiplicação como a soma de parcelas iguais,
localização espacial (leste, oeste, norte e sul). Importância e significado dos
números no contexto da carta. Respeito, cumprimento de regras e normas.
Atividade
4/Sugestões
Destinada ao 1º., 2º. e 3º. anos de escolaridade, com
adaptações. Leitura e reconhecimento do gênero instrucional “receita”. Ampliação
do vocabulário; percepção dos significados e dos diferentes sentidos das palavras
e expressões. Oralidade: estabelecer relações entre os “ingredientes” e o “modo
de preparo”. Unidades de medidas, uso de variados instrumentos de medidas, aproximações,
trabalho em equipe para fazer os bolinhos. Proporcionalidade.
Contexto:
Receita
caseira
|
Problematizando:
Pode-se preparar a receita com os
alunos, atividade esta realizada por uma das professoras alfabetizadoras.
Trabalhar os diferentes instrumentos de medidas, colher, xícara, etc. Propor
que escrevam outra receita, trabalhar a ortografia, propor e discutir o
trabalho em equipe, observar as diferentes unidades de medidas (massa,
capacidade, tempo). Explorar que quantidade de cada ingrediente deve ser
utilizada para duplicar ou triplicar a receita. Quantidade de bolinhos
produzidos, repartir (dividir) os bolinhos. Se já foram comidos x bolinhos,
quantos ainda restam?
3. Considerações
Finais
Ao partirmos das práticas sociais e, por conseguinte,
da realidade dos alunos, acreditamos que se torna possível letrar o aluno, sem
compartimentar disciplinas que, direta ou indiretamente, estão relacionadas e
integradas em seu cotidiano. Se não separamos a língua portuguesa da matemática
ao resolvermos problemas corriqueiros do dia a dia, como escrever uma lista de
compras, compreender e reconhecer os sentidos de signos linguísticos e
numéricos em diferentes contextos e gêneros textuais, constatamos que
desassociar essas disciplinas durante a prática social do letramento se torna
algo artificial.
Além disso, nas atividades propostas neste artigo,
pudemos perceber que através do numeramento matemático (TOLEDO, 2004), utilizando
diferentes gêneros do discurso, sejam eles dos mais simples como a toalha de
papel que vem na bandeja de lanches de uma rede de fast food e a receita culinária, passando pela carta (atividade 3)
até o gênero menos utilizado por crianças de seis a oito anos, como a “ata”
(atividade 1), é possível discutir e debater com os alunos valores da sociedade
pós-moderna, ética e, consequentemente, discursos hegemônicos presente nas
práticas sociais do dia a dia.
Assim, ao propormos um debate questionando se o
“futebol” é um jogo apenas para meninos ou que público se interessa por
receitas culinárias, estamos desconstruindo discursivamente, através da prática
docente, um domínio exercido pelo poder de um grupo sobre os demais, baseado
mais no consenso do que no uso da força (RESENDE & RAMALHO, 2006, p. 43).
Nota-se, nessa atividade, uma reflexão clara sobre os gêneros e sobre os diferentes papéis assumidos por homens e
mulheres no mundo contemporâneo. A mesma desconstrução ocorre na atividade 3,
quando levamos o aluno a refletir sobre a anulação
ou apagamento de identidades sociais,
isto é, quando eu reconheço no outro um número (a carta do vizinho do 201 para
o 103), mas não conheço a sua história, a sua vida, as suas memórias e, muito
menos, o seu nome. Que consequências o apagamento de identidades sociais e o
não reconhecimento do outro trazem para a sociedade atual?
Quanto aos resultados, destacamos que as duas
primeiras atividades foram trabalhadas em sala, com turmas do terceiro ano de
escolaridade e as professoras alfabetizadoras relataram grande êxito nas
mesmas. A primeira atividade rendeu discussões de aproximadamente uma semana de
trabalho. Os alunos fizeram diversas contribuições, o texto se expandiu e
ganhou uma forma diferente da inicial, pensada pela professora.
A segunda atividade (folheto com números) foi de
grande sucesso. Os alunos se mostraram encantados e impressionados com tantos
números e tantos contextos diferentes em que esses apareceram. Não faltaram
ideias e outras sugestões, remetendo o contexto do futebol aos times de
preferência dos alunos. Uma das crianças sugeriu uma pesquisa para que pudessem
comprovar que a maioria da turma torcia para o seu time de coração, o que
enfatiza o potencial e o leque de possibilidades que a atividade proporciona.
As demais atividades ainda não foram testadas, mas seguem como sugestão para a
continuidade do trabalho, onde destacamos a integração com outras disciplinas,
tais como ciências, geografia e história, sempre buscando e privilegiando o
contexto social a que estão inseridos.
Por fim, entendemos que o professor pesquisador, em
sua tarefa docente – que é uma prática social – ao refletir sobre a sua prática
e propor atividades interdisciplinares em sala de aula, relacionadas ao
contexto e à vivência do aluno, rompe com as relações de poder reproduzidas e que
estruturam a sociedade. Assim, o professor que se propõe a avaliar sua própria
prática docente desafia essas relações de poder. Ao problematizar as
convenções, estamos rompendo com a constituição do sujeito homogêneo, em que
muitos de nós fomos socializados (FAIRCLOUGH, 2001, pp. 126-131).
Esperamos que este artigo, portanto, seja um recurso
para professores pesquisadores refletirem sobre suas práticas,
desconstruindo-as e reconstruindo-as cotidianamente em suas tarefas docentes.
Mais do que letrar um aluno – acreditando não ser esta uma tarefa fácil - mas
visando a mudanças profundas nos discursos, nas estruturas sociais e,
participando ativamente, para a construção de mudanças sociais que permitam uma
sociedade mais justa e igualitária.
4. Referências
BRAGA,
R. Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 1991.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua
portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: 1997, pp. 144.
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf>.
Acessado em 10 dez. 2014.
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Acessado em 10 dez. 2014.
D'AMBRÓSIO, U., A
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C. F. R. (Org.). Letramento no Brasil:
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FONSECA, M. C. F. R. (Org.). Letramento no Brasil: habilidades
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_______. A educação
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brasileira. In: FONSECA, M. C. F. R. (Org.). Letramento no Brasil: habilidades matemáticas. Global , São
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_______. Letramento e suas implicações para o ensino de
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KOCH, I. V. O texto e
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MARTINS, M. S. C. Letramento,
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MOITA
LOPES, L. P. (org.). Por uma
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RESENDE,
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SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros
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TOLEDO, M. E. R. O.
Numeramento e escolarização: o papel da escola no enfrentamento das demandas
matemáticas cotidianas. In: FONSECA, M. C. F. R. (Org.). Letramento no
Brasil: habilidades matemáticas. Global, São Paulo, 2004.
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